Felipe Crisafulli
Desde o momento em que o Supremo Tribunal Federal, por meio do Ministro Luiz Fux, em sede de medida cautelar, deliberou pela implementação de medidas imediatas a impedir que os beneficiários de programas sociais e assistenciais, tais como o Bolsa Família, utilizem seus recursos nas bets, este articulista se posicionou pela – no mínimo – inviabilidade dessa determinação.
Noves fora, como também frisado à época, a decisão possa – tal qual o inferno, diria São Bernardo de Clairvaix – ser repleta de boas intenções, a verdade é que, como já refletiu José Murilo de Carvalho, a bondade, a caridade e a doçura de caráter – ainda que oriundas de um pretenso déspota esclarecido – jamais impediram a construção de sociedades desiguais e injustas ao redor do planeta.
Desde a Revolução Francesa, impera a ideia de que o Estado deve se intrometer o mínimo possível na esfera de liberdade individual. É, portanto, um ônus do Estado justificar qualquer interferência no âmbito de proteção dos direitos fundamentais de cada cidadão.
Esclarecer à população os riscos do jogo e das apostas, que a moderação é a base de tudo, que o ato de apostar, como tudo na vida, exige equilíbrio
E apostar nada mais é do que um ato individual, da esfera da liberdade individual de cada um. É, portanto, ao cidadão que incumbe avaliar se tem condições – mentais, psicológicas, físicas, econômicas, sociais, etc. – de se valer dessa forma de entretenimento, diversão, distração.
Para isso, melhor do que simplesmente proibir, é ensinar. Esclarecer à população os riscos do jogo e das apostas, que a moderação é a base de tudo, que o ato de apostar, como tudo na vida, exige equilíbrio, autocontrole e consciência de que haverá, eventualmente, ganhos, mas, (decerto) não menos eventualmente, também perdas.
Em outras palavras, o Poder Público brasileiro deveria preocupar-se em informar e comunicar à população os prós e contras dos jogos e das apostas, protegendo-o de forma verdadeiramente eficaz neste particular, em vez de buscar formas de impedir que o pobre possa se valer desse meio de diversão. Afinal, reza a sabedoria popular que proibido é mais gostoso – e tudo o que não se deseja, aqui, é que o jogo e a aposta sejam praticados de forma ilícita ou por quem não deva ter contato com esse tipo de atividade humana.
Na realidade, esse tipo de deliberação vai na contramão do que estabelece a legislação do Programa Bolsa Família. Enquanto política social, corresponde a etapa do processo gradual e progressivo de implementação da universalização da renda básica de cidadania, destinando-se à transferência direta e condicionada de renda. Em outros termos, trata-se de benefício em dinheiro, que confere (certa) autonomia ao indivíduo.
Essa autonomia, porém, não é absoluta. A realização de pré-natal, o cumprimento do calendário nacional de vacinação, o acompanhamento do estado nutricional dos beneficiários de até sete anos de idade e a frequência escolar para as crianças e os adolescentes são todas condicionalidades impostas pela lei aos beneficiários do Programa.
Sem – ao que parece – haver se debruçado sobre este ponto em específico, a verdade é que nenhuma dessas condicionalidades parece sustentar a decisão monocrática do Ministro Fux, com vista à proibição da utilização de recursos provenientes de políticas socioassistenciais para fins da modalidade lotérica apostas de quota fixa.
E mais: a deliberação do STF, ainda que amparada em audiência pública, parece ter sido dada de forma um tanto quanto açodada, na medida em que se choca com a legislação pátria em mais de um nível: tanto no âmbito da lei que institui o Bolsa-Família, que exige estrito respeito à privacidade das famílias beneficiárias, quanto para fins da Lei Geral de Proteção de Dados (“LGPD”), que impede que o Governo informe às casas de apostas a lista de beneficiários do Programa. Trata-se de mais um entendimento que este articulista já havia sustentado anteriormente e que a AGU também acaba de contemplar.
Em resumo, e até mesmo para não se viver de um “Eu já sabia!” neste texto, a verdade é a seguinte: ao adotar esse tipo de medidas, o Estado brasileiro – independentemente por qual de seus Poderes – apenas ilustra o que, há mais de três décadas, cantava o saudoso sambista carioca, de origem recifense, Bezerra da Silva: “É, mas eu sou favela, e posso falar de cadeira: minha gente é trabalhadeira e nunca teve assistência social. Sim, mas só vive lá porque para o pobre não tem outro jeito, apenas só tem o direito a um salário de fome e uma vida normal”.
*Felipe Crisafulli – Sócio do Ambiel Advogados. Especialista em Direito Desportivo e Regulamentação de Jogos e Apostas. Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra (Portugal). Membro da Comissão de Direito dos Jogos, Apostas e do Jogo Responsável da OAB/SP.