Comunicação Formad
Considerada uma das cidades mais pantaneiras de Mato Grosso e banhada pelo rio Cuiabá, Barão de Melgaço é também um dos municípios com o maior número de colônias de pescadoras e pescadores. Com menos de 10 mil habitantes, a cidade historicamente tem na pesca artesanal a sua principal fonte de renda, ou tinha, até janeiro de 2024, quando o Cota Zero passou a vigorar, proibindo o armazenamento, comércio e transporte dos peixes mais importantes para o modo de vida tradicional.
Em localidades onde só é possível chegar pelo rio, a ausência de pescadores artesanais profissionais exercendo sua atividade modifica totalmente a rotina e a economia da cidade. Acompanhe a segunda reportagem da série “Um ano depois: o que sobrou do Cota Zero em Mato Grosso?”, realizada pelo Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad).
A distância de Barão de Melgaço a Cuiabá, capital de Mato Grosso, é de pouco mais de 100 km, mas a realidade das cidades é totalmente diferente. O ritmo mais pacato e tranquilo das comunidades pantaneiras nem lembra a pressa e correria de uma capital, mas carrega a tradição e um modo de vida que deveria, mas não vem sendo respeitado. Em Barão, o carro é substituído pelo barco para chegar às mais de 40 comunidades de pescadoras e pescadores distribuídas ao longo do imponente rio Cuiabá.
O cafezinho é servido desde bem cedo a quem chegar. Animais e crianças brincam juntos à beira do rio. Um jacaré avistado a poucos metros nem assusta, porque já é conhecido. As casas são humildes e foram orgulhosamente erguidas por antepassados, muitos deles, pescadoras e pescadores artesanais.
“É muito triste olhar para o quintal da minha casa que é o rio e saber que não posso pegar peixe e trazer para cá. Não posso vendê-lo para comprar um arroz, uma camisa. Se você tem dinheiro, você compra comida, remédio. Se não tem, como faz? Eu criei minhas duas filhas sendo pescador e hoje agradeço que elas não estão aqui para passar por isso. Nos foi tirado tudo, temos medo de fazer alguma coisa e ser preso”, relata o pescador João Antônio da Silva, da comunidade Estirão das Flechas.
O apelido “João Sucuri” veio de um episódio de quando foi atacado pela temida cobra há alguns anos e sobreviveu para contar. A história, ele jura, não é de brincadeira, aconteceu mesmo. Com os olhos cheios d’água, ele conta que o medo da morte quando foi picado por uma sucuri nunca fez com que quisesse abandonar a vida de pantaneiro. Tristeza mesmo ele tem quando vê as águas do rio Cuiabá diminuindo a cada ano com os impactos de barragens e usinas hidrelétricas, além da contaminação por agrotóxicos de propriedades rurais próximas.
Para quem vive da pesca há gerações, as Leis 12.197/23 e 12.434/24 (Cota Zero) não representam somente a suspensão de uma atividade profissional. Proibidas de armazenar, vender e transportar os peixes mais importantes e rentáveis, as famílias pantaneiras sofrem impactos em seu modo de vida.
Moradora da comunidade Corredor D’Água, Roseli da Silva é pescadora há 17 anos, e relembra com saudade como eram os finais de semana até o Cota Zero começar. A tradicional “peixada” reunia amigos, familiares e outros pescadores, momentos em que histórias eram contadas, tradições ensinadas e as novas gerações viam nas anteriores o que é ser do Pantanal.
“Todo mundo pescava o seu peixe, tirava o seu dinheirinho para o dia a dia, sem esse apavoro que está hoje. É o nosso jeito de levar a vida, e que agora mudou tudo. Os peixes liberados pesam pouco. Então quem quer ganhar mais, tem que pescar muito e nem sempre compensa”, conta.
Outra fonte de renda de Roseli com o marido, que também é pescador, era o aluguel de quartos para turistas interessados em vivenciar um pouco mais da vida pantaneira. Depois de um dia de pescaria, eles retornavam à casa de Roseli, onde também aprendiam sobre o manuseio e preparo dos peixes de forma caseira e tradicional. “Tinha tempos que eu tinha fila de espera para reservar aqui. No ano passado, só fechei uma vez para turistas”.
O avanço do turismo, um dos argumentos do Governo de Mato Grosso para defender o Cota Zero, só aconteceu para a rede hoteleira de luxo da região do Pantanal, que tem investido em pacotes de reservas empresariais, incluindo o “pesque e solte”, única modalidade beneficiada pela nova legislação.
Para os pequenos hotéis e pousadas da cidade, nem de longe esse dinheiro está chegando. Aliás, em janeiro de 2025, não havia hotéis com preços médios em funcionamento. Somente uma pousada de grande porte, onde uma reserva para dois dias ficaria em R$ 5,5 mil.
E o que sobra dos peixes fisgados por turistas depois de tirarem suas fotos? Machucados, são devolvidos às águas, onde acabam virando presas mais fáceis dos cardumes de piranhas que a cada mês aumentam nas bacias de Mato Grosso, causando um desequilíbrio da ictiofauna por causa dessa mudança na lei, o que já havia sido alertado por organizações antes mesmo da aprovação do Cota Zero.
Repesca e a desinformação
Implantado com atraso, conforme alertado pelo Formad, o Registro Estadual de Pescadores Profissionais (Repesca) é outro imbróglio do Cota Zero. Em tese, ele deveria servir de subsídio para que pescadoras e pescadores tivessem direito a receber o auxílio indenizatório de um salário mínimo pelo tempo de paralisação das atividades, sob condições que violam os direitos humanos das comunidades tradicionais pesqueiras.
Porém, desde que foi finalmente efetivado, com a abertura de cadastros para as comunidades - diga-se de passagem, exclusivamente virtual, desconsiderando a realidade da maioria de pescadoras e pescadores que nem sequer tem acesso a computadores e celulares com internet, além da baixa taxa de alfabetização, não está totalmente em funcionamento no estado.
Entre os muitos fatores está a insegurança jurídica quanto a perda de outros benefícios sociais, como a qualidade de segurado especial do INSS, no caso de cadastramento, requalificação profissional e, após, recebimento do auxílio indenizatório. O tema já foi discutido diversas vezes, e no entendimento dado na liminar expedida em 03 de julho de 2024 pelo relator das ações no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro André Mendonça, a manutenção da qualidade de segurado especial do INSS estaria garantida, porém, falta saber o entendimento dos demais ministros.
“O pescador ficou na dúvida e está na dúvida até agora. Tem pessoas fazendo, acreditando nessa liminar, mas será que ela não pode ser derrubada? Esse é o medo. Já tiraram o nosso direito de pescar, aí quando assusta, tira o direito de aposentar lá na frente. Clara, essa lei não é. O governo não teve a humildade de mandar ninguém para as colônias e explicar. E o pescador também não tem sabedoria pra ir buscar informação”, relata preocupado Antônio de Amorim, o Seu Totó do Estirão Comprido.
De acordo com nota técnica da Divisão de Seguro-Desemprego do Pescador Artesanal do INSS, de abril de 2024, “o recebimento por parte do pescador profissional artesanal do auxílio pecuniário, conflita com as regras de concessão do seguro defeso, considerando que o requerente não pode dispor de qualquer fonte de renda diversa da decorrente da atividade pesqueira referente às espécies objeto do defeso. (…) Assim, entendemos que os pescadores beneficiários não farão jus ao seguro desemprego do pescador artesanal”.
Em janeiro deste ano, equipes da Secretaria de Assistência Social de Cidadania (Setasc) e de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema) estiveram em Barão de Melgaço promovendo o Dia “D”, um mutirão de cadastramento no Repesca. Pelo relato de alguns pescadores, a informação repassada é de que o auxílio passaria a ser pago a partir de fevereiro.
No entanto, segundo a Lei, o estado “poderá condicionar o recebimento do auxílio, onde houver oferta de requalificação, à matrícula e frequência” e, de acordo com o Decreto 678/2024: “nos locais onde houver oferta dos cursos de requalificação, o recebimento do auxílio pecuniário aos pescadores profissionais artesanais ficará condicionado à matrícula e frequência do beneficiário”.
A Secretaria Executiva do Formad já oficiou a Divisão de Seguro-Desemprego do Pescador Artesanal e a Coordenação-Geral de Reconhecimento de Direitos, ambos do INSS, a fim de obter um posicionamento público do órgão em relação ao Repesca e a garantia-dever de manutenção da qualidade de segurado especial e demais direitos sociais dos pescadores e pescadoras.
Também já foram solicitadas ao governo estadual informações atualizadas sobre o total de pessoas cadastradas no Repesca e o valor repassado. Até o fechamento desta reportagem, não houve resposta.